NOTA DA REALIZADORA

Conheci a Silvia há alguns anos atrás num cinema em Havana. O filme (esqueci-me qual era) fazia parte do Festival Internacional do Novo Cinema Latino Americano que ocorre em Havana todos os anos em Dezembro. O festival é tão popular junto do público cubano que muitas vezes se formam longas filas a volta dos quarteirões dos cinemas, na espera de conseguir bilhetes para o próximo filme. 


Nesta atmosfera de celebração cinematográfica, a Silvia e eu fomos fomos jantar no bairro chinês ali ao pé. Depois de falarmos sobre os nossos filmes favoritos, as dificuldades da vida em Cuba e o quanto tinha arrefecido nessa noite, o momento incontornável aconteceu, tal como tinha já acontecido muitas vezes anteriormente e como haveria de acontecer muitas vezes depois. A Silvia perguntou-me de onde eu sou. Eu respondi que sou de Portugal, nascida em Angola. “Angola?”, perguntou ela, incrédula. Na família dela vários membros tinham estado na guerra em Angola – pai, irmão, irmã. Os homens como soldados, a irmã como cantora numa brigada cultural militar.


Aqui estava então, mais uma vez, a história dos cubanos em Angola, contos mágicos de um passado esquecido, vindo à superfície nos momentos mais inesperados. Comecei então a aperceber-me que não era estranho estas histórias estarem sempre a surgir uma vez que milhares de cubanos foram para a guerra em Angola, parte de uma vasta operação militar que durou quinze anos e afectou uma geração inteira. Falar de Angola, em qualquer parte de Cuba, provoca quase sempre um desembrulhar de histórias do passado.


E foi assim que Cartas de Angola, o documentário, começou. Primeiro, timidamente, como uma investigação destas histórias, reveladas nos momentos e nos lugares mais inesperados: um pescador numa praia remota no sopé da Serra Maestra que esteve no Uíge; um cinema com o nome de uma província angolana na praça central de Guantanamo; um saco de plástico cheio de fotografias amarelecidas de Angola que me foi dado num casa mal iluminada nos arrabaldes de Havana.


Depois, mais tarde, o filme tornou-se uma maneira de eu entender a minha própria história, aquilo que me aconteceu e à minha família, através dos cubanos, também eles frágeis partículas no meio dos turbilhões da História. Tal como eu, apanhada no meio das convulsões do tempo – a derrocada de um império de quinhentos anos, o êxodo maciço de milhares de pessoas, um novo país que nascia – os cubanos foram igualmente apanhados no turbilhão de um processo histórico que mudaria para sempre as suas vidas.


Terminado o jantar, a Silvia, também ela cantora, começou a entoar a melodia de Valodia, uma canção revolucionaria angolana dos anos 70. No frio da noite de Havana, a Silvia cantou em português quase perfeito, lembrando-se ainda de cada palavra numa canção que ela não tinha ouvido há mais de duas décadas. Povo Angolano, todos bem vigilantes....


Dulce Fernandes, Brooklyn, 8 Setembro 2011

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