terça-feira, 25 de outubro de 2011

ESPECTROS DA GUERRA FRIA . António Tomás


Cartas de Angola é um filme sobre o que foi a presença dos cubanos em Angola. O que, a princípio, pode parecer não ser bem o caso. Angola nunca aparece fisicamente e é apenas uma referência na capacidade de evocação dos cubanos. Ou seja, o que eles se lembram do que foi a passagem por Angola: os dias nas trincheiras sob intenso fogo das forças sul-africanas; os mortos e os feridos; mas também a ternura dos angolanos. Ouvir esses cubanos falar sobre Angola, lembra, às vezes, pessoas acabadas de acordar que contam os seus sonhos ou pesadelos. É intenso. Mas a escolha de não ter imagens sobre Angola acaba por fazer sentido no quadro do que Dulce Fernandes pretende com esse filme. O que apresenta é simultaneamente uma parábola sobre o absurdo da guerra e sobre os trabalhos da História e memória colectiva. Ou seja, Cartas de Angola não é um filme sobre a intervenção cubana em Angola, mas sim sobre a memória dessa guerra, sobre as marcas desse passado recente no presente dos cubanos. Daí, talvez, a insistência da autora em não usar imagens de arquivo. É nos interstícios entre o passado e o presente que se cruzam os objectos do filme, os cubanos, e as memórias pessoais da autora. E o resultado é o poema filmado sobre como viver um presente, individual e colectivo, carregado pela História de um dos momentos mais conturbados do século XX: a intervenção cubana em Angola, país que constituiu um dos mais dramáticos teatros da guerra fria, e cujas personagens foram cubanos, portugueses, sul-africanos e angolanos.
Porém, a grande História não é chamada no documentário de Dulce Fernandes. Assistir a Cartas de Angola é como ir ao teatro e apanhar Macbeth pelo meio. Percebe-se a angústia do rei, mas não se sabe o motivo que a causa. Esta é a metáfora usada pelo maior conhecedor dos absurdos do quotidiano, o escritor espanhol Javier Marias, num dos mais luminosos romances da literatura espanhola contemporânea: Amanhã, na Batalha, pensa em mim. Na peça de Shakespeare angústia de Macbeth provém do facto de ter traído o rei que era suposto proteger. No romance de Marias, há uma personagem cuja angústia resulta de, numa noite de insónia, ter ligado a televisão e encontrado a meio o filme de Orson Welles baseado na tragédia de Shakespeare. A personagem não sabe porque sofre Macbeth. A sua angústia, portanto, não provém de empatia pelo sofrimento de Macbeth, mas é resultado da sua própria neurose. Ver o filme de Dulce Fernandes, como Luandense que cresceu entre quartéis de tropas cubanas, tenho menos empatia pelo esforço dos cubanos, e compreendo melhor a neurose implícita. É preciso justificar uma empreitada que só faz sentido pelo recurso da ideologia do “internacionalismo proletário”. Os cubanos sofrem, assim, de um passado que não faz parte do filme. Porque o filme é sobre as suas acções no presente. E é daí que vem um certo sentido de absurdo: Dulce Fernandes mostra-nos indivíduos marcados pela aventura angolana, membros de um povo a fazer sentido de um destino histórico cuja ambição ultrapassou de longe as possibilidades e os recursos do país.  
No filme, o passado, propriamente dito, é apenas um recurso estilístico. Ou seja, a História, como a narração nos filmes mudos, passa pelos separadores negros que intermedeiam a acção. E aí se coloca as  histórias vivenciadas pelos cubanos num processo mais longo e complexo. Assim, Dulce Fernandes força-nos a encarar a descolonização numa perspectiva menos provincial do que aquela cujo epicentro é o 25 de Abril. A revolução dos Cravos é aqui não apenas consequência de um colonialismo serôdio. É também, e mais importante, a chave que abre a porta do inferno: as vias para grandes movimentações de pessoas e poderio militar. A tropa colonial arreia a bandeira numa cerimónia sem glória, em Novembro de 1975, em Luanda, quando as tropas cubanas já entram por Angola adentro. É o “retorno” então para centenas de milhares de portugueses, e a “fuga” de um número nunca quantificado de angolanos que procuraram guarida nos países vizinhos, como o Zaire e a Zâmbia.
Cartas de Angola é pois essa viagem no tempo, num tempo de reconstruções, que a voz ajuda a tecer. Dulce Fernandes dispensa a técnica mais óbvia do cinema documentário que é colocar as personagens, ou entrevistados, a desfiarem as suas recordações sob um fundo de pano preto. Como o que lhe interessa é o passado no presente, ela opta por colocar os cubanos a discorrer sobre a passagem por Angola, enquanto lidam com as suas tarefas do quotidiano: seja lavar carros, ou a jogar ténis e xadrez, ou a estender roupa no varal. Não fosse a história que contam esses cubanos nada tinham de heróico, e seriam muito provavelmente como qualquer outro nacional na ilha de Fidel Castro com os quais um turista se deve cruzar nas ruas de Havana. Os cubanos escolhidos por Dulce Fernandes lutaram em Angola e marcaram uma nação pelo destino da procura de um espaço geopolítico no contexto da guerra fria.
E nesse aspecto que o filme de Dulce Fernandes parece absolutamente inovador, se compararmos com outros documentários sobre assuntos semelhantes. Porque ela não julga. Dulce Fernandes não usa os cubanos para mostrar a sua visão da História. Não mostra a inutilidade de se ter combatido em Angola. Ainda que esta mensagem seja implícita (nos silêncios dos entrevistados perante as câmaras, muitos certamente se perguntam se terá valido à pena). Não nos revela os trabalhos da ideologia, ou da simbologia da nação, ou os processos através dos quais indivíduos são transformados em máquinas de guerra, dispostos a morrer por uma bandeira ou por um ideal. Dulce Fernandes toma os cubanos a sério. E percebe-se também que isso é estratégico. Porque a intenção de Dulce Fernandes, em narrativa paralela às histórias dos cubanos, é cruzar o destino dos cubanos ao seu próprio destino e de muitos portugueses que abandonaram Angola no processo da descolonização.
O facto de Dulce Fernandes ter nascido em Angola, em 1973, de pais portugueses a cumprir uma missão de trabalho em Angola, não é aqui portanto um mero acidente biográfico. É parte da estrutura do filme. Dulce Fernandes recusa o epónimo de retornada, pela impossibilidade de, tendo nascido em Angola, poder estar a “retornar” a um país onde nunca tinha estado. Mas o espaço que reclama como seu só já existe nas fotografias descoloridas dos álbuns de família, que mostra no filme. Por via dessa contradição, Dulce Fernandes narra o filme a partir da instável ideia de ser natural de um território, hoje um país independente, em que nunca esteve. E reconstrói assim as imagens, baseadas nas histórias contadas no filme, sobre o nascimento dessa nação africana.
Percebe-se, portanto, o que, em última instância, está em causa neste filme: a história de que somos feitos na relação com a História que nos faz. Este é o percurso de Dulce Fernandes ao reinscrever a sua própria história sobre uma História cujo fundo é a colonização e a descolonização. Porque contra essa História, contra as identidades que se nos colam a pele, o único antídoto, como se sugerisse, é reflectir sobre o passado do presente de que somos feitos.
por António Tomás . BUALA

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

CARTAS DE ANGOLA de Dulce Fernandes estreia no Doclisboa

DIÁRIO DIGITAL . 22 de Outubro . 2011
A estreia de Dulce Fernandes no cinema, com o documentário «Cartas de Angola», sobre a presença cubana no país africano após o 25 de Abril de 1974, acontece hoje no festival Doclisboa. Fotojornalista de formação e durante sete anos ativista ambiental numa organização não governamental nos Estados Unidos, a portuguesa Dulce Fernandes decidiu experimentar o documentário, depois de algumas visitas a Cuba lhe terem chamado a atenção para os cubanos que combateram na guerra em Angola após 1975. «Apercebi-me que era um fenómeno com uma presença muito forte. Não tinha ideia da dimensão da presença cubana em Angola, porque toda a gente tem sempre alguém que esteve em Angola ou que conhece alguém que esteve em Angola», justificou à Lusa a realizadora estreante.

Diário Digital / Lusa

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

DocLisboa . Geografias dos tempos pela janela lisboeta

JORNAL i . 20 de Outubro . 2011


Festival Doclisboa com programação atenta ao passado e presente socio-político

JORNAL AÇORIANO ORIENTAL . 20 de Outubro . 2011
Os 50 anos do começo da Guerra Colonial e os movimentos de mudança nos países árabes estarão em foco no festival de cinema documental Doclisboa, que começa hoje, com uma programação menos extensa e concentrada em menos salas.

À nona edição, o festival conta como uma nova direção, liderada por Anna Glogowski, e a programação tem menos filmes e menos locais de exibição, concentrando-se nos cinemas São Jorge e Londres, Culturgest, Cinemateca e Teatro do Bairro.

"Estamos a tentar garantir que o Doclisboa não apague por diminuição de filmes nem pela dimensão da qualidade", de forma a "manter essa estrela do Doclisboa brilhando aqui e lá fora também", disse a diretora do festival à agência Lusa.

O realizador Frederick Wiseman, de 81 anos, volta a Portugal para mostrar "Crazy Horse", o documentário sobre o famoso cabaret parisiense, hoje na sessão de abertura do Doclisboa.

Da programação destaca-se uma série de filmes sobre "Movimentos de Libertação em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau (1961-1974)", a propósito dos 50 anos do começo da Guerra Colonial.

"Nunca mais se fez cinema assim", considerou Anna Glogowski, referindo que entre os 15 filmes que vão ser mostrados há um "ponto comum", que é "uma espécie de presença por trás das fronteiras da guerrilha".

No festival serão ainda mostrados documentários sobre as revoluções árabes, como "Tahrir - Liberation Square", de Stefano Savona, incluído na competição internacional, que regista o eclodir da revolução deste ano no Egito.

Fora de competição será exibido "Plus Jamais Peur", de Mourad Ben Cheikh, sobre a revolução tunisina.

Tanto Mourad Ben Cheikh como Stefano Savona estarão em Lisboa para apresentar os respetivos documentários.

No domingo passará "In film nist/This is not a film", o filme testemunho dos realizadores iranianos Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, que estão detidos no Irão, feito quase na clandestinidade que foi exibido no festival de Cannes e que terá estreia comercial em Portugal.

Entre os filmes portugueses selecionados contam-se "Cartas de Angola", de Dulce Fernandes, e "É na terra não é na lua", documentário de Gonçalo Tocha sobre a ilha do Corvo, única produção portuguesa na competição internacional.

Lusa/AO Online

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

DOCLISBOA ARRANCA HOJE EM CINCO CINEMAS

JORNAL SOL . 20 de Outubro . 2011
Os 50 anos do começo da Guerra Colonial e os movimentos de mudança nos países árabes estarão em foco no festival de cinema documental Doclisboa, que começa hoje, com uma programação menos extensa e concentrada em menos salas.
À nona edição, o festival conta como uma nova direção, liderada por Anna Glogowski, e a programação tem menos filmes e menos locais de exibição, concentrando-se nos cinemas São Jorge e Londres, Culturgest, Cinemateca e Teatro do Bairro.

«Estamos a tentar garantir que o Doclisboa não apague por diminuição de filmes nem pela dimensão da qualidade», de forma a «manter essa estrela do Doclisboa brilhando aqui e lá fora também», disse a diretora do festival à agência Lusa.

O realizador Frederick Wiseman, de 81 anos, volta a Portugal para mostrar "Crazy Horse", o documentário sobre o famoso cabaret parisiense, hoje na sessão de abertura do Doclisboa.

Da programação destaca-se uma série de filmes sobre "Movimentos de Libertação em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau (1961-1974)", a propósito dos 50 anos do começo da Guerra Colonial.

«Nunca mais se fez cinema assim», considerou Anna Glogowski, referindo que entre os 15 filmes que vão ser mostrados há um «ponto comum», que é «uma espécie de presença por trás das fronteiras da guerrilha».

No festival serão ainda mostrados documentários sobre as revoluções árabes, como "Tahrir - Liberation Square", de Stefano Savona, incluído na competição internacional, que regista o eclodir da revolução deste ano no Egito.

Fora de competição será exibido "Plus Jamais Peur", de Mourad Ben Cheikh, sobre a revolução tunisina.

Tanto Mourad Ben Cheikh como Stefano Savona estarão em Lisboa para apresentar os respetivos documentários.

No domingo passará "In film nist/This is not a film", o filme testemunho dos realizadores iranianos Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, que estão detidos no Irão, feito quase na clandestinidade que foi exibido no festival de Cannes e que terá estreia comercial em Portugal.

Entre os filmes portugueses seleccionados contam-se "Cartas de Angola", de Dulce Fernandes, e "É na terra não é na lua", documentário de Gonçalo Tocha sobre a ilha do Corvo, única produção portuguesa na competição internacional.

Na secção "Heartbeat" será mostrado, em antestreia, o documentário que Martin Scorsese fez sobre o guitarrista dos Beatles, George Harrison, em "Living in the material world".

A presença em Lisboa da realizadora belga Agnès Varda e as duas retrospectivas sobre Jean Rouch e Harun Farocki são outros destaques do festival, que termina no dia 30.

Lusa/SOL